Há muito que denunciamos o rumo a que o troço da EN 378 pertencente ao concelho do Seixal tomou.
Não tem ponta por onde se lhe pegue ... mas há quem diga que por aqui só exageramos, que temos maus fígados, que no Seixal dá gosto viver, que o Seixal é uma referência ... etc...etc...etc...
Vejam então um texto de Clara Ferreira Alves publicado recentemente na revista ÚNICA - EXPRESSO .
Cito : « É um lugar de passagem que se define a partir da estrada para outro lugar. É também uma paisagem que define o modelo de desenvolvimento português. Sai-se da auto-estrada e entra-se numa estrada cheia de semáforos que prepara o caminho para a Arrábida, Sesimbra, Azeitão, a Lagoa de Albufeira e as praias do Meco. Quem escolher este roteiro, a não ser que vá dar a volta por Setúbal e pela serra, terá de passar em Fernão Ferro.
Uma freguesia com cerca de 10 mil habitantes criada em 1993 pelo desmembramento de Aldeia de Paio Pires, Amora e Arrentela. O nome vem de um tal Fernão Ferro Peres, que tinha o cognome de Babilon. Irmão do tal Paio Pires, ou Paio Peres, fundador da dita aldeia. Segundo a melhor informação pesquisada na net, um cruzado caído em desgraça durante a guerra entre D. Sancho II e D. Afonso III. Usava a Cruz de Cristo na armadura e no punho da espada, que se designava por "ferro". Ou então, o nome vir-lhe-ia de ferrar animais. Parece ter sido um homem corpulento e cruel. Um ferrabrás. O homem não tem culpa do que veio a seguir. Quem passa a caminho de mais verdes paragens conhece o troço de Fernão Ferro por "o pesadelo". Ou "a lixeira". Próspera, cheia de moradias, algumas com piscina, a freguesia não é habitada por gente pobre. O problema não é a pobreza, é o modelo de riqueza. Dos 25 km quadrados a maior parte deve ter sido mata e pinhal dos quais se notam alguns vestígios secos e poeirentos, troncos ressequidos e manchas de pinheiros onde esvoaçam sacos de plástico nos dias de vento.
A estrada serve de mostruário dos intermediários e negociantes dos objectos, serviços e confortos da existência suburbana que copia a rústica. Piscinas de plástico; lareiras de pedra falsa; banheiras, retretes e lavatórios de porcelana; organizações de eventos, casamentos e baptizados; hortos, vasos e potes de barro; gnomos e fornos; restaurantes com nomes em elisão; automóveis novos e em segunda mão; hotéis diurnos; oficinas de mecânica e bate-chapas; esquemas nocturnos. Existe uma loja, com vasto pátio a dar sobre a estrada, que ostenta um jardim zoológico em réplicas de tamanho natural, cavalos e campinos, burros e javalis. Decerto haverá golfinhos. Leões de gesso olham do alto dos muros das casas, guardiães dos templos do mau gosto. Num jardim particular, a Branca de Neve e os Sete Anões está cercada por uma variedade de estatuetas e miniaturas de alfaias agrícolas na Disneylândia ao domicílio.
A estrada, por dar acesso a muitos lugares, está sempre atascada de carros em marcha lenta, filas intermináveis aos fins-de-semana. Carros caros, condutores com mão fora da janela e a outra no volante, o ar displicente e entediado dos malandros de estrada, toca-me que vou-te às trombas comigo não te metes. Não espanta que os fabricantes e revendedores ostentem tudo o que se pode ostentar à beira da estrada, os automobilistas são potenciais clientes. Lembro-me de há uns anos se verem retretes, designadas nos letreiros por sanitas, aprumadas como soldados à beira do alcatrão. As árvores foram deitadas abaixo para entrar o cimento e não se vislumbra um plano urbano, uma rua desenhada, uma vaga redenção. Tudo é feio, sujo, inacabado, aziago.
Ali jaz o que os portugueses tomaram como sendo o seu ideal modelo de desenvolvimento, o alcatrão para o carro, o betão para a obra, a televisão acesa todo o dia no café com um concurso ou uma telenovela. A construção civil como motor da economia, o lazer como actividade urbana separada da vida do subúrbio por um carro, uma praia ou um piquenique. Uma gente que não sabe o gosto que tem, que nada aprendeu e nada quis aprender, e que passou do semianalfabetismo para o telemóvel sem passagem pela educação e a literacia.
Pequenos e médios empresários de arrojo videirinho protegidos por autarcas espertos que nunca foram diferentes deles. Uns e outros confundidos na ganância do curto prazo. A paisagem devassada por construções da clandestinidade, algumas legalizadas à força, e microindústrias que passaram a providenciar serviços na segunda fase económica do ciclo de prosperidade iniciado com a revolução e a descentralização. Eventos e espectáculos organizam-se. T2 vendem-se.
Podia ter sido feito de outra forma? Podia, mas não seria a mesma coisa. A dádiva da arriba da Caparica não é mais do que outra babilónia, um monte de praias emporcalhadas e barracas de terceiro mundo. Tudo falhou. Como nestas freguesias dos contrafortes da Arrábida onde tudo foi autorizado ou amalgamado. Basta olhar para a freguesia limítrofe de Fernão Ferro, a Quinta do Conde. O turismo foi repelido e o dinheiro acabou, tal como o tempo. Os imigrantes acabarão por ir um dia. Aqui cabe inteiro o pobre Portugal do Alexandre O'Neill: feito de três sílabas de plástico que é mais barato.
Texto publicado na edição da Única de 29 de Maio de 2010 »