Eu sou a favor do TGV. Não sou um  neo-ludita, antes pelo contrário.   Ganho a vida a fazer, usar, ensinar,  vender tecnologia. Sou luso-francês, tenho amigos que desenvolvem  software de controlo para o TGV francês e belga, trabalhei em empresas  que poderão lucrar com o TGV português. Sou a favor que uma tecnologia  de transporte ferroviário rápido e eficiente seja uma realidade em  Portugal. Mas, não a qualquer custo, e muito menos pelos valores que  estão a ser apresentados aos contribuintes portugueses. Não desta forma.
 Aliás esta questão do TGV faz lembrar aquele episódio dos Simpsons  “Marge vs Monorail”, em que um vendedor da banha da cobra, acabou por  conseguir impingir um projecto de monorail aos habitantes da cidade de  Springfield. Pelo menos nesta ficção, os cidadãos puderam pronunciar-se  em assembleia municipal, e com excepção da cautelosa Marge, acabaram por  votar a favor. Escusado será dizer qual foi o resultado desta história  ficcionada, a cidade ficou na ruína financeira, e o monorail acabou por  cair no esquecimento. Acho que vale a pena ouvir esta música, que está  na Internet (ir ao youtube.com  e procurar por “monorail song”). Senão, também se pode dar uma voltinha  ali a Oeiras, e apreciar um monorail exemplificativo de dinheiro  público mal gasto… outro projecto esquecido.
 Mas vamos à realidade, no caso da decisão de avançar com o projecto  do TGV, esta possibilidade de democracia directa não é dada aos nossos  cidadãos, seja através de referendo ou outra consulta, por isso o debate  pros e contras é infrutífero, ou quase… em Setembro ou Outubro veremos o  que nos dizem os politicos. A decisão [de construir o TGV] está tomada à  revelia dos portugueses, até porque dificilmente se pode falar num  projecto monolítico de TGV mas, antes de vários projectos de TGV: existe  a ligação Lisboa- [Sines]-Madrid, a de Lisboa-Porto, a de Porto-Vigo,  ou mesmo a de Faro-Huelva! (e as outra para Salamanca que por agora  parece esquecida.)
 Com toda a sinceridade, ainda não percebi o propósito desta  formidável discussão, à la “prós e contras”, que se instalou nos nossos  média e até no discurso político acerca do TGV, quando se sabe que a  decisão de investimento neste projecto está mais do que tomada, com o  aval dos grandes partidos (embora o PSD o negue, mas quando era governo  tomou medidas decisivas vis-a-vis o projecto de desenvolvimento do TGV),  da actual comissão europeia, das grandes empresas… Já ninguém pára este  comboio. Se calhar nem com uma petição popular, como aquela contra  “mais contentores” devido às obras de ampliação do porto de Lisboa, e  tenho sérias dúvidas acerca da posição anti-TGV do PSD, não só porque é  incoerente com o seu passado governativo, como me parece apenas uma  manobra pré-partidária.
 Como se viu nesta questão, a vontade popular, ou mesmo das chamadas  elites iluminadas, ou dos famosos “think tanks” portugueses, não foram  chamadas para a questão do TGV. Mesmo aqueles, que acreditaram que  politicamente se poderia parar o TGV, e foram atrás da fantástica  promessa eleitoral de Durão Barroso, de que “enquanto houver crianças em  lista de espera não há TGV nem novo aeroporto” se devem ter sentido  enganados… em véspera de novas eleições, o discurso da actual liderança  PSD soa, e vão-me desculpar o francesismo a dejá vu.
Seja como for, o TGV ainda não é uma realidade palpável (felizmente  adiado, vamos ver de que forma e como). Mas, pensemos bem no que está em  jogo: só as obras de TGV actualmente planeadas:
 TGV Lisboa-Madrid (3500 milhões),
 TGV Lisboa-Porto (4000 milhões)
 totalizam portanto cerca de 7500 milhões de euros, isto para não  falar do recém-anunciado TGV Porto-Vigo, acertado na última conferência  luso-espanhola em Zamora, e das linhas Faro-Huelva e Aveiro-Salamanca  que para já, estão fora do pacote. O TGV corresponde portanto, a um  investimento de cerca de 4,6% do PIB português (quase 6 vezes o   investimento anual em I&D feito em Portugal, que se cifra nos 0,78%  do PIB).
 O valor real do investimento, esse, saber-se à depois da obra feita e  das inevitáveis derrapagens orçamentais (que nos projectos  internacionais de TGV excedem em média os 30%).
 O “TGV” é por isso, e sem sombras de dúvidas, o negócio do século XXI  em Portugal. Alguém dúvida disto? Parece-me que não. Por isso é que  interessa tanto aos principais partidos, seja ao PS, ou ao PSD, embora  este último tenha um discurso politico menos efusivo em relação a este  projecto. Se for governo, logo veremos…
 E o resto? Os enormes custos operacionais do projecto? O resto, pagam  os portugueses e os que estão para vir. Então, e a nossa dívida
externa? Essa, também é pequena e além disso bata incorporar a lógica do  “logo se vê”, porque nós também nunca fomos muito bons a fazer contas  de longo prazo de qualquer das formas.
 Este negócio do TGV interessa a toda a gente, menos ao contribuinte e  aos portugueses em geral. Fazendo a declaração dos interessados:
 - Gabinetes de projecto, para      quem o TGV ainda antes de o ser, já  o era em projectos, estudos, estudos      aos estudos, obviament  auto-justificativos. Afinal existe um conflito de      agência , entre  quem os faz e o objecto de estudo. (A autoridade de quem      faz o  estudo é crucial como se viu no caso aeroporto da OTA versus       Alcochete, que acabou por ser realizado no LNEC. Porque não um estudo  TGV      versus outras soluções e alternativas?)
- Gabinetes de consultadoria de      planeamento de transportes.
- Empresas portuguesas e      estrangeiras de engenharia e projectos.
- Às construtoras civis que agora      com a crise no imobiliário e  contracção do sector privado estão à brocha e      a usar a força de  lobb para forçar obra pública.
- Às empresas estrangeiras que      vão vender a consultoria, o  material circulante e outro equipamento      operacional, em modalidade  chave-na-mão e com engenhosos esquemas de      vendor lock in. Afinal de  contas, uma pipa de massa, que os franceses ou      os alemães vão  fazer à nossa custa … mérito próprio da suas campanhas      junto de  Bruxelas e São Bento.
- Às empresas de distribuição e      de produção de electricidade (sim  é verdade, o TGV consome uma quantidade      significativa de energia e  nem sequer é um meio de transporte      particularmente eficiente face à  ferrovia tradicional.)
- Aos proponentes à concessão,      que terão salvaguardados os seus  interesses, visto que o estado pagará      durante o período em causa o  diferencial entre a lotação e capacidade      máxima – é uma espécie de  portagem ferroviária, em que os comboios andaram      sempre  virtualmente cheios, mesmo que na realidade estejam vazios.
- Aos vendedores de créditos de      carbono, que sabem que o país  terá de importar mais carvão e gás natural      para alimentar a rede de  TGV.
E isto para não falar da eterna questão das expropriações e da lista  interminável de intermediários que se vão chegar à frente, por isso já  ninguém consegue mesmo parar o TGV.
 Sobre o  TGV, seus custos e proveitos importante realizar um debate  aprofundado, sem pressas. Se a UE quiser os fundos de volta, que sejam  renegociados para outros fins, como a criação do hipercluster do mar.
Importa travar esta megalomania. Infelizmente, o TGV tem vindo a ser  vendido internamente com base num conjunto de falácias. As que tenho  vindo a identificar são basicamente estas:
 Falácia nº1: O TGV é bom para a economia nacional
 Parece-me que o melhor para a economia nacional é não gastar dinheiro  com elefantes brancos, vejamos as crises financeiras que abalam hoje  diversos países europeus. Não seria melhor sermos mais prudentes nestes  gastos que sobrecarregam a nossa divida externa?
 Falácia nº2: Não vale a pena acabar as obras de modernização  da linha do Norte, porque o pendular nunca irá atingir a velocidade de  cruzeiro de 220 Km/h
 Escrevi parte deste texto, numa viagem de Alfa pendular entre Coimbra  e Lisboa. Perto de Santarém viajamos a 229Km/h. Agora, repare-se que  este sufismo é dito pelas mesmas pessoas que afirmam categoricamente que  tínhamos toda a capacidade de engenharia civil para construir um  aeroporto sobre estacas na OTA, mas pelos vistos somos incapazes de  melhorar uma linha férrea, construída por engenheiros franceses em
meados do séc. XIX. Depois de já se ter gasto o que se gastou, e  renovado uma parte significativa da extensão da linha. Agora é que  paramos? Não parece fazer sentido.
 Falácia nº3: O TGV é um transporte “moderno”
 A verdade inconveniente, mas que nos meios da engenharia de  transportes é bem conhecido, é que de facto o comboio pendular é um  transporte mais moderno, no sentido cronológico do conceito. O TGV é uma  aproximação de força bruta, idealizada nos anos 50 à problemática do  transporte ferroviário, quando a energia era barata, e em que à custa de  muito mais energia temos mais velocidade (a relação entre energia  dispendida e velocidade é exponencial). O pendular foi desenvolvido  posteriormente, na sequência da crise energética, na década de 70 e 80 e  é uma resposta elegante às  problemáticas levantadas pelo TGV. É uma  solução de compromisso entre velocidade
relativamente elevada e adaptação dos meios ferroviários convencionais existentes, e que usa as leis da física eficientemente.
 Falácia nº4: Portugal tem que estar ligado à rede europeia de  alta velocidade ou a famosa táctica do medo: “não Apanharmos o Comboio”
 Eu confesso que esta é a minha favorita, porque é uma daquelas  pérolas das frases feitas com autoridade moral de quem as diz. Tem que  ser assim porque sim. Pronto, não carece de argumentação. Como se uma  linha de transporte de TGV sobretudo orientada para passageiros fosse
 o mesmo que um gasoduto – entram pessoas de um lado e saem pessoas do  outro. Mas, pensemos um pouco acerca disto: a ligação internacional do  TGV faz-se por causa de Madrid, ou seja, em termos de transporte de  passageiros o TGV não é feito para ligar à rede europeia, mas sim para  ligar a Madrid (esta é a unica distancia minimamente competitiva com o  avião). É completamente irrealista pensar que o TGV é concorrencial para  distancias superiores as 700Km, ou que vamos a Paris ou Londres de TGV,  porque não é, aliás este é um facto reconhecido pelos próprios  defensores TGV a nível internacional. Enquanto, os tais 500-700Km do  raio de acção óptimo do TGV permitem atingir um conjunto de centros  urbanos considerável no densamente povoado eixo do cento europeu, aqui  na península, dá para chegarmos a Madrid. Mesmo assim ficamos a 3h30 de  TGV de Madrid, enquanto demoramos cerca 2h00 de avião c/ check-in  informático, e com muito mais boa vontade temos Barcelona a 7h-7h30 de  TGV e a 3h de avião c/ check-in informático.
 Falácia nº5: “TGV vai revolucionar o transporte de mercadorias”
 Isto parece-me um absurdo. O TGV não tem grande utilidade para a  generalidade das mercadorias. O que as empresas precisam é de um sector  ferroviário convencional eficiente, com empresas de transporte de  ferrovia, quer sejam de matriz pública ou privada que lhes ofereçam  serviços capazes, confiáveis, regulares e a preços competitivos.
 Falácia nº6: “Lá fora têm TGV então nós também temos de ter” ou “ficamos atrasados em relação aos espanhois.”
 A verdade é que quase nenhum país periférico como Portugal, adoptou  ou pensa vir a adoptar o TGV nos seus territórios, nem na Suécia, nem na  Noruega, nem na Finlândia, nem sequer na Dinamarca (os escandinavos,  esses”modelos” ficam sempre de fora nestas modas. Sem grandes receios de  “perder o comboio”.) É também o caso de países centrais, mas pequenos  como o nosso, os suíços (com excepção das terminações internacionais a  Genéve, negociadas com França e a de Zurique, paga pelos Alemães), os  Irlandeses (razões óbvias de insularidade), os Austríacos… repare que  todos estes países, teriam condições materiais e tecnológicas para  avançar com o TGV, mas preferiram não o fazer,  adoptaram antes os seus  modelos pendulares ou de velocidade elevada (semelhantes ao nosso Alfa),  e escalaram ou adaptaram a tecnologia às
suas idiossincrasias nacionais, fazendo reverter os ganhos de forma mais  ou menos efectiva, consoante o caso, para as suas indústrias nacionais.
 Falácia nº7: “O TGV é mais ecológico.”
 Em relação ao quê exactamente? Mesmo não considerando o impacto  ecológico, social e de degradação da qualidade de vida das populações  afectadas directamente pela construção da rede férrea, o TGV implica um  redesenho da rede de distribuição e fornecimento de electricidade, e  quando comparado com o pendular numa base KWh o TGV perde pelo simples  facto de ser menos eficiente, especialmente em percursos relativamente  curtos, como seria o caso da ligação Porto-Lisboa, com pelo menos três  paragens previstas em Leiria, Coimbra e Aveiro. Além de que a operação  do TGV tem custos escondidos, na rede eléctrica nacional, no aumento da  produção eléctrica, o que faria aumentar ainda mais a nossa factura e  ineficiência energética.
 Falácia nº8: “Não interessa olhar os custos mas antes os proveitos”
 Sim senhor, genericamente de acordo. O problema é que ainda ninguém  conseguiu fazer um plano de negócios suficientemente sólido para o  demonstrar. Se o TGV fosse realmente rentável, não faltariam  investidores privados, e o estado não precisava de entrar no projecto.  Mas, neste momento esta é uma hipótese virtual. Como ninguém consegue  demonstrar a bondade financeira do projecto, apela-se às externalidades  económicas, que são muito frágeis, ou inexistentes. O actual modelo de  negócio em análise vai mais longe ao considerar que o TGV é mutuamente  exclusivo com o pendular. Este sim, de facto rentável sem necessidade  nem de subsídios directos, nem passageiros virtuais, e uma das poucas  fontes de rendimento real da empresa pública CP.
 Falácia nº9:  Actualmente a ligação Lisboa-Madrid não tem proposta ferroviária de passageiros séria.
 E então? Qual é o crime de não haver uma ligação séria entre estas  duas capitais. Não há alternativas? E bem mais baratas, e  disponibilizadas por operadores privados sem quaisquer subsídios? Vale  mesmo a pena penhoramos o país por causa disto? Construindo uma rede  superior às nossas necessidades. Mas, como disse anteriormente, a linha  Lisboa Madrid já tem atrás de si um conjunto de acordos internacionais, e  um voltar de face do governo português teria um impacto considerável na  nossa credibilidade internacional. Não obstante, vale a pena pensar  nas  consequências geo-estratégicas da linha de TGV Madrid-Lisboa. A  rede de TGV espanhola está inserida num projecto politico mais vasto  resultante de um problema nacionalista e separatista que não existe me  Portugal e que redunda  num plano nacional espanhol mais vasto de ligar  Madrid a todas as capitais províncias em cerca de três horas. O  interesse do projecto TGV Lisboa-Madrid é sobretudo espanhol, dada a  assimetria das duas cidades, da nossa balança de pagamentos, e ao  projecto que lhe estará subjacente, de reforço da dimensão ibérica da  península. E que melhor do que o mundial de futebol conjunto em 2018  para corar esta nova união?
 Falácia nº10: Fabulosas contrapartidas para a industria nacional
 Ainda ninguém sabe quais são, nem em que moldes serão negociadas. Se  forem tão bem negociadas como as contrapartidas da Airbus com as OGMA e  afins… Enfim, depois de se ter liquidado a Sorefame e respectiva fábrica  na Amadora, o país perdeu efectivamente a capacidade produtiva de meios  de transporte ferroviários de grande dimensão, ainda se fazem algumas  coisas, mas muito longe da escala necessária para se acrescentar valor  significativo no projecto de TGV… Note-se, que este é um dos argumentos  pró-TGV em muitos países, o do relançamento das indústrias nacionais  ferroviárias. Mas, alguém acredita que Portugal se tornaria um  fabricante de TGV? – indústria de hiper intensidade de capital e  conhecimento só porque vamos comprar uma duzia à Alstom? Não me parece: a  industria espanhola na ferrovia resulta de decadas de aposta continuada  no sector, com obvias economias de escala e dimensão industrial não  extrapoláveis para Portugal.
Depois temos questões as ditas conjunturais, como a de que o TGV é uma  componente essencial para ajudar a relançar a economia nacional.
Confesso que não estou apto a discutir estas visões neo-keynesianas da  economia, mas isto parece-me aquela lógica da enxurrada de milhões  de  dinheiros públicos como forma de revitalizar a economia. Há também essa  ideia que o investimento no TGV irá permitir às empresas portuguesas  (Efacec, Mota Engil, etc) que venham a trabalhar no projecto, um balão  de oxigénio financeiro. Isto é um pensamento tacanho, porque dará os  sinais errados a estas empresas,  fazendo-as desviarem-se das suas  acertadas e relativamente bem sucedidas estratégias de  internacionalização (a Efacec teve este ano, as suas melhores receitas  de sempre, e sobretudo devio ao mercado internacional, e sem necessidade  do TGV). Desviando-lhes a atenção  e recursos para um projecto  nacional, com a bandeirinha do dinheiro fácil. Como ex-funcionário da  Efacec Internacional digo-lhe que isto é um erro, que apesar de  bem-intencionado (nesse propósito) faz mais mal do que bem, a médio  prazo.
 Se a questão é investir com fins laterais aos do projecto em si,  então nós conseguimos pensar em pelo menos em dez projectos de média  dimensão muito mais estruturantes para a economia portuguesa a  médio-longo prazo, como o de investir numa rede de transporte  ferroviário convencional e de velocidade elevada realmente eficiente e  adequada às nossas populações ou metas realmente ambiciosas, como a de  Portugal se tornar o primeiro país neutro em carbono já em 2020 ou 2030.  Há desígnios alternativos para Portugal aos futebóis e aos TGVs. Basta  pensarmos pela própria cabeça e não andarmos a reboque das ideias que os  vendilhões de TGVs nos querem impingir.»