terça-feira, setembro 14, 2010

QUESTIONAR O TGV - PELOS LEITORES DO A-SUL



Apesar de não concordar com a totalidade das questões levantadas , gostaria de publicar a opinião de um leitor do a-sul sobre o TGV num e-mail recebido já há alguns meses mas que continua actual.
Pelos leitores do a-sul :


«Por amarquet

Eu sou a favor do TGV. Não sou um neo-ludita, antes pelo contrário. Ganho a vida a fazer, usar, ensinar, vender tecnologia. Sou luso-francês, tenho amigos que desenvolvem software de controlo para o TGV francês e belga, trabalhei em empresas que poderão lucrar com o TGV português. Sou a favor que uma tecnologia de transporte ferroviário rápido e eficiente seja uma realidade em Portugal. Mas, não a qualquer custo, e muito menos pelos valores que estão a ser apresentados aos contribuintes portugueses. Não desta forma.

Aliás esta questão do TGV faz lembrar aquele episódio dos Simpsons “Marge vs Monorail”, em que um vendedor da banha da cobra, acabou por conseguir impingir um projecto de monorail aos habitantes da cidade de Springfield. Pelo menos nesta ficção, os cidadãos puderam pronunciar-se em assembleia municipal, e com excepção da cautelosa Marge, acabaram por votar a favor. Escusado será dizer qual foi o resultado desta história ficcionada, a cidade ficou na ruína financeira, e o monorail acabou por cair no esquecimento. Acho que vale a pena ouvir esta música, que está na Internet (ir ao youtube.com e procurar por “monorail song”). Senão, também se pode dar uma voltinha ali a Oeiras, e apreciar um monorail exemplificativo de dinheiro público mal gasto… outro projecto esquecido.

Mas vamos à realidade, no caso da decisão de avançar com o projecto do TGV, esta possibilidade de democracia directa não é dada aos nossos cidadãos, seja através de referendo ou outra consulta, por isso o debate pros e contras é infrutífero, ou quase… em Setembro ou Outubro veremos o que nos dizem os politicos. A decisão [de construir o TGV] está tomada à revelia dos portugueses, até porque dificilmente se pode falar num projecto monolítico de TGV mas, antes de vários projectos de TGV: existe a ligação Lisboa- [Sines]-Madrid, a de Lisboa-Porto, a de Porto-Vigo, ou mesmo a de Faro-Huelva! (e as outra para Salamanca que por agora parece esquecida.)

Com toda a sinceridade, ainda não percebi o propósito desta formidável discussão, à la “prós e contras”, que se instalou nos nossos média e até no discurso político acerca do TGV, quando se sabe que a decisão de investimento neste projecto está mais do que tomada, com o aval dos grandes partidos (embora o PSD o negue, mas quando era governo tomou medidas decisivas vis-a-vis o projecto de desenvolvimento do TGV), da actual comissão europeia, das grandes empresas… Já ninguém pára este comboio. Se calhar nem com uma petição popular, como aquela contra “mais contentores” devido às obras de ampliação do porto de Lisboa, e tenho sérias dúvidas acerca da posição anti-TGV do PSD, não só porque é incoerente com o seu passado governativo, como me parece apenas uma manobra pré-partidária.

Como se viu nesta questão, a vontade popular, ou mesmo das chamadas elites iluminadas, ou dos famosos “think tanks” portugueses, não foram chamadas para a questão do TGV. Mesmo aqueles, que acreditaram que politicamente se poderia parar o TGV, e foram atrás da fantástica promessa eleitoral de Durão Barroso, de que “enquanto houver crianças em lista de espera não há TGV nem novo aeroporto” se devem ter sentido enganados… em véspera de novas eleições, o discurso da actual liderança PSD soa, e vão-me desculpar o francesismo a dejá vu.
Seja como for, o TGV ainda não é uma realidade palpável (felizmente adiado, vamos ver de que forma e como). Mas, pensemos bem no que está em jogo: só as obras de TGV actualmente planeadas:

TGV Lisboa-Madrid (3500 milhões),

TGV Lisboa-Porto (4000 milhões)

totalizam portanto cerca de 7500 milhões de euros, isto para não falar do recém-anunciado TGV Porto-Vigo, acertado na última conferência luso-espanhola em Zamora, e das linhas Faro-Huelva e Aveiro-Salamanca que para já, estão fora do pacote. O TGV corresponde portanto, a um investimento de cerca de 4,6% do PIB português (quase 6 vezes o investimento anual em I&D feito em Portugal, que se cifra nos 0,78% do PIB).

O valor real do investimento, esse, saber-se à depois da obra feita e das inevitáveis derrapagens orçamentais (que nos projectos internacionais de TGV excedem em média os 30%).

O “TGV” é por isso, e sem sombras de dúvidas, o negócio do século XXI em Portugal. Alguém dúvida disto? Parece-me que não. Por isso é que interessa tanto aos principais partidos, seja ao PS, ou ao PSD, embora este último tenha um discurso politico menos efusivo em relação a este projecto. Se for governo, logo veremos…

E o resto? Os enormes custos operacionais do projecto? O resto, pagam os portugueses e os que estão para vir. Então, e a nossa dívida
externa? Essa, também é pequena e além disso bata incorporar a lógica do “logo se vê”, porque nós também nunca fomos muito bons a fazer contas de longo prazo de qualquer das formas.

Este negócio do TGV interessa a toda a gente, menos ao contribuinte e aos portugueses em geral. Fazendo a declaração dos interessados:

  • Gabinetes de projecto, para quem o TGV ainda antes de o ser, já o era em projectos, estudos, estudos aos estudos, obviament auto-justificativos. Afinal existe um conflito de agência , entre quem os faz e o objecto de estudo. (A autoridade de quem faz o estudo é crucial como se viu no caso aeroporto da OTA versus Alcochete, que acabou por ser realizado no LNEC. Porque não um estudo TGV versus outras soluções e alternativas?)
  • Gabinetes de consultadoria de planeamento de transportes.
  • Empresas portuguesas e estrangeiras de engenharia e projectos.
  • Às construtoras civis que agora com a crise no imobiliário e contracção do sector privado estão à brocha e a usar a força de lobb para forçar obra pública.
  • Às empresas estrangeiras que vão vender a consultoria, o material circulante e outro equipamento operacional, em modalidade chave-na-mão e com engenhosos esquemas de vendor lock in. Afinal de contas, uma pipa de massa, que os franceses ou os alemães vão fazer à nossa custa … mérito próprio da suas campanhas junto de Bruxelas e São Bento.
  • Às empresas de distribuição e de produção de electricidade (sim é verdade, o TGV consome uma quantidade significativa de energia e nem sequer é um meio de transporte particularmente eficiente face à ferrovia tradicional.)
  • Aos proponentes à concessão, que terão salvaguardados os seus interesses, visto que o estado pagará durante o período em causa o diferencial entre a lotação e capacidade máxima – é uma espécie de portagem ferroviária, em que os comboios andaram sempre virtualmente cheios, mesmo que na realidade estejam vazios.
  • Aos vendedores de créditos de carbono, que sabem que o país terá de importar mais carvão e gás natural para alimentar a rede de TGV.

E isto para não falar da eterna questão das expropriações e da lista interminável de intermediários que se vão chegar à frente, por isso já ninguém consegue mesmo parar o TGV.

Sobre o TGV, seus custos e proveitos importante realizar um debate aprofundado, sem pressas. Se a UE quiser os fundos de volta, que sejam renegociados para outros fins, como a criação do hipercluster do mar.
Importa travar esta megalomania. Infelizmente, o TGV tem vindo a ser vendido internamente com base num conjunto de falácias. As que tenho vindo a identificar são basicamente estas:

Falácia nº1: O TGV é bom para a economia nacional

Parece-me que o melhor para a economia nacional é não gastar dinheiro com elefantes brancos, vejamos as crises financeiras que abalam hoje diversos países europeus. Não seria melhor sermos mais prudentes nestes gastos que sobrecarregam a nossa divida externa?

Falácia nº2: Não vale a pena acabar as obras de modernização da linha do Norte, porque o pendular nunca irá atingir a velocidade de cruzeiro de 220 Km/h

Escrevi parte deste texto, numa viagem de Alfa pendular entre Coimbra e Lisboa. Perto de Santarém viajamos a 229Km/h. Agora, repare-se que este sufismo é dito pelas mesmas pessoas que afirmam categoricamente que tínhamos toda a capacidade de engenharia civil para construir um aeroporto sobre estacas na OTA, mas pelos vistos somos incapazes de melhorar uma linha férrea, construída por engenheiros franceses em
meados do séc. XIX. Depois de já se ter gasto o que se gastou, e renovado uma parte significativa da extensão da linha. Agora é que paramos? Não parece fazer sentido.

Falácia nº3: O TGV é um transporte “moderno”

A verdade inconveniente, mas que nos meios da engenharia de transportes é bem conhecido, é que de facto o comboio pendular é um transporte mais moderno, no sentido cronológico do conceito. O TGV é uma aproximação de força bruta, idealizada nos anos 50 à problemática do transporte ferroviário, quando a energia era barata, e em que à custa de muito mais energia temos mais velocidade (a relação entre energia dispendida e velocidade é exponencial). O pendular foi desenvolvido posteriormente, na sequência da crise energética, na década de 70 e 80 e é uma resposta elegante às problemáticas levantadas pelo TGV. É uma solução de compromisso entre velocidade
relativamente elevada e adaptação dos meios ferroviários convencionais existentes, e que usa as leis da física eficientemente.

Falácia nº4: Portugal tem que estar ligado à rede europeia de alta velocidade ou a famosa táctica do medo: “não Apanharmos o Comboio”

Eu confesso que esta é a minha favorita, porque é uma daquelas pérolas das frases feitas com autoridade moral de quem as diz. Tem que ser assim porque sim. Pronto, não carece de argumentação. Como se uma linha de transporte de TGV sobretudo orientada para passageiros fosse

o mesmo que um gasoduto – entram pessoas de um lado e saem pessoas do outro. Mas, pensemos um pouco acerca disto: a ligação internacional do TGV faz-se por causa de Madrid, ou seja, em termos de transporte de passageiros o TGV não é feito para ligar à rede europeia, mas sim para ligar a Madrid (esta é a unica distancia minimamente competitiva com o avião). É completamente irrealista pensar que o TGV é concorrencial para distancias superiores as 700Km, ou que vamos a Paris ou Londres de TGV, porque não é, aliás este é um facto reconhecido pelos próprios defensores TGV a nível internacional. Enquanto, os tais 500-700Km do raio de acção óptimo do TGV permitem atingir um conjunto de centros urbanos considerável no densamente povoado eixo do cento europeu, aqui na península, dá para chegarmos a Madrid. Mesmo assim ficamos a 3h30 de TGV de Madrid, enquanto demoramos cerca 2h00 de avião c/ check-in informático, e com muito mais boa vontade temos Barcelona a 7h-7h30 de TGV e a 3h de avião c/ check-in informático.

Falácia nº5: “TGV vai revolucionar o transporte de mercadorias”

Isto parece-me um absurdo. O TGV não tem grande utilidade para a generalidade das mercadorias. O que as empresas precisam é de um sector ferroviário convencional eficiente, com empresas de transporte de ferrovia, quer sejam de matriz pública ou privada que lhes ofereçam serviços capazes, confiáveis, regulares e a preços competitivos.

Falácia nº6: “Lá fora têm TGV então nós também temos de ter” ou “ficamos atrasados em relação aos espanhois.”

A verdade é que quase nenhum país periférico como Portugal, adoptou ou pensa vir a adoptar o TGV nos seus territórios, nem na Suécia, nem na Noruega, nem na Finlândia, nem sequer na Dinamarca (os escandinavos, esses”modelos” ficam sempre de fora nestas modas. Sem grandes receios de “perder o comboio”.) É também o caso de países centrais, mas pequenos como o nosso, os suíços (com excepção das terminações internacionais a Genéve, negociadas com França e a de Zurique, paga pelos Alemães), os Irlandeses (razões óbvias de insularidade), os Austríacos… repare que todos estes países, teriam condições materiais e tecnológicas para avançar com o TGV, mas preferiram não o fazer, adoptaram antes os seus modelos pendulares ou de velocidade elevada (semelhantes ao nosso Alfa), e escalaram ou adaptaram a tecnologia às
suas idiossincrasias nacionais, fazendo reverter os ganhos de forma mais ou menos efectiva, consoante o caso, para as suas indústrias nacionais.

Falácia nº7: “O TGV é mais ecológico.”

Em relação ao quê exactamente? Mesmo não considerando o impacto ecológico, social e de degradação da qualidade de vida das populações afectadas directamente pela construção da rede férrea, o TGV implica um redesenho da rede de distribuição e fornecimento de electricidade, e quando comparado com o pendular numa base KWh o TGV perde pelo simples facto de ser menos eficiente, especialmente em percursos relativamente curtos, como seria o caso da ligação Porto-Lisboa, com pelo menos três paragens previstas em Leiria, Coimbra e Aveiro. Além de que a operação do TGV tem custos escondidos, na rede eléctrica nacional, no aumento da produção eléctrica, o que faria aumentar ainda mais a nossa factura e ineficiência energética.

Falácia nº8: “Não interessa olhar os custos mas antes os proveitos”

Sim senhor, genericamente de acordo. O problema é que ainda ninguém conseguiu fazer um plano de negócios suficientemente sólido para o demonstrar. Se o TGV fosse realmente rentável, não faltariam investidores privados, e o estado não precisava de entrar no projecto. Mas, neste momento esta é uma hipótese virtual. Como ninguém consegue demonstrar a bondade financeira do projecto, apela-se às externalidades económicas, que são muito frágeis, ou inexistentes. O actual modelo de negócio em análise vai mais longe ao considerar que o TGV é mutuamente exclusivo com o pendular. Este sim, de facto rentável sem necessidade nem de subsídios directos, nem passageiros virtuais, e uma das poucas fontes de rendimento real da empresa pública CP.

Falácia nº9: Actualmente a ligação Lisboa-Madrid não tem proposta ferroviária de passageiros séria.

E então? Qual é o crime de não haver uma ligação séria entre estas duas capitais. Não há alternativas? E bem mais baratas, e disponibilizadas por operadores privados sem quaisquer subsídios? Vale mesmo a pena penhoramos o país por causa disto? Construindo uma rede superior às nossas necessidades. Mas, como disse anteriormente, a linha Lisboa Madrid já tem atrás de si um conjunto de acordos internacionais, e um voltar de face do governo português teria um impacto considerável na nossa credibilidade internacional. Não obstante, vale a pena pensar nas consequências geo-estratégicas da linha de TGV Madrid-Lisboa. A rede de TGV espanhola está inserida num projecto politico mais vasto resultante de um problema nacionalista e separatista que não existe me Portugal e que redunda num plano nacional espanhol mais vasto de ligar Madrid a todas as capitais províncias em cerca de três horas. O interesse do projecto TGV Lisboa-Madrid é sobretudo espanhol, dada a assimetria das duas cidades, da nossa balança de pagamentos, e ao projecto que lhe estará subjacente, de reforço da dimensão ibérica da península. E que melhor do que o mundial de futebol conjunto em 2018 para corar esta nova união?

Falácia nº10: Fabulosas contrapartidas para a industria nacional

Ainda ninguém sabe quais são, nem em que moldes serão negociadas. Se forem tão bem negociadas como as contrapartidas da Airbus com as OGMA e afins… Enfim, depois de se ter liquidado a Sorefame e respectiva fábrica na Amadora, o país perdeu efectivamente a capacidade produtiva de meios de transporte ferroviários de grande dimensão, ainda se fazem algumas coisas, mas muito longe da escala necessária para se acrescentar valor significativo no projecto de TGV… Note-se, que este é um dos argumentos pró-TGV em muitos países, o do relançamento das indústrias nacionais ferroviárias. Mas, alguém acredita que Portugal se tornaria um fabricante de TGV? – indústria de hiper intensidade de capital e conhecimento só porque vamos comprar uma duzia à Alstom? Não me parece: a industria espanhola na ferrovia resulta de decadas de aposta continuada no sector, com obvias economias de escala e dimensão industrial não extrapoláveis para Portugal.
Depois temos questões as ditas conjunturais, como a de que o TGV é uma componente essencial para ajudar a relançar a economia nacional.
Confesso que não estou apto a discutir estas visões neo-keynesianas da economia, mas isto parece-me aquela lógica da enxurrada de milhões de dinheiros públicos como forma de revitalizar a economia. Há também essa ideia que o investimento no TGV irá permitir às empresas portuguesas (Efacec, Mota Engil, etc) que venham a trabalhar no projecto, um balão de oxigénio financeiro. Isto é um pensamento tacanho, porque dará os sinais errados a estas empresas, fazendo-as desviarem-se das suas acertadas e relativamente bem sucedidas estratégias de internacionalização (a Efacec teve este ano, as suas melhores receitas de sempre, e sobretudo devio ao mercado internacional, e sem necessidade do TGV). Desviando-lhes a atenção e recursos para um projecto nacional, com a bandeirinha do dinheiro fácil. Como ex-funcionário da Efacec Internacional digo-lhe que isto é um erro, que apesar de bem-intencionado (nesse propósito) faz mais mal do que bem, a médio prazo.

Se a questão é investir com fins laterais aos do projecto em si, então nós conseguimos pensar em pelo menos em dez projectos de média dimensão muito mais estruturantes para a economia portuguesa a médio-longo prazo, como o de investir numa rede de transporte ferroviário convencional e de velocidade elevada realmente eficiente e adequada às nossas populações ou metas realmente ambiciosas, como a de Portugal se tornar o primeiro país neutro em carbono já em 2020 ou 2030. Há desígnios alternativos para Portugal aos futebóis e aos TGVs. Basta pensarmos pela própria cabeça e não andarmos a reboque das ideias que os vendilhões de TGVs nos querem impingir.»

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